27/06/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
 
MOUSTAFA (e Maria e Bruno) – PARTE IX

Pois é, senhores e senhoras, ficaram a saber parte da minha vida. Foi bom ter-vos aqui comigo, para desabafar depois de ter ido para a rua. Mas agora tenho de partir, porque conquistarei outra rua, outra praça, outra cidade.
Durante este fim de semana que passou vi tumultos e mais tumultos na televisão. Tenho-me apercebido de que têm havido muitos recentemente, um pouco por todo o mundo, como os que ocorrera no Iémen, na América Central, ou na Tunísia, em pleno Sudeste Asiático - será que me voltei a enganar?, raios para a Geografia.
Porém, nestes últimos dias o povo aglomerava-se no Brasil e na Turquia. Então, a revolta interior que sempre esteve dentro de mim apelou: 'Não sejas S-A-C-I-R-D-E-M, luta com o teu povo', embora, na verdade, o povo não fosse o meu. Por isso fiz uma mochila, agarrei no dinheiro que conservava debaixo da almofada cheia de saliva seca e fiz-me à estrada.
Ia parar a história por aqui, mas como sei que não conseguiríeis aguentar, vou contá-la até ao fim - ou quase até ao fim.
Assim que parti, fiquei com fome. Parei na segunda esquina a contar do meu apartamento e sentei-me numa cadeia de fast-food cujo nome não pronunciarei, por causa da publicidade gratuita e dos direitos que uma empresa concorrente poderá eventualmente vir a pagar-me, depois de ficar famoso com a minha jornada. Mas pronto, posso adiantar-vos - só os inteligente compreenderão - que o seu símbolo é um palhaço um quanto assustador e que começa por 'Mc' - deve ter sido fundada por um DJ qualquer.
De estômago refastelado, deu-me a saudade. Liguei à Maria e ao Bruno para me acompanharem. E, logicamente, eles deixaram tudo para trás para me seguirem. Perguntaram-me onde ia e eu disse que para o Brasil ou para a Turquia. A Maria explicou-me que eu tinha de decidir para onde seguir, pelo simples facto de os países se localizarem em sítios antagónicos - não sei o que esta palavra quer dizer, mas foi a que ela usou. Perguntei-lhe se queria levar uma cabeçada por me desrespeitar, o que ela recusou gentilmente com a cabeça. Pensei durante uns minutos - poucos, claro - e supus que teria de marchar em direcção ao país em que não fosse preciso apanhar qualquer avião, devido à fobia do Bruno. Prontamente ele disse que a fobia era minha e não dele, ao que argumentei com uma cotovelada na caixa torácica e um soquito debaixo do queixo. Eu sabia que o medo era meu, mas eu ia iniciar uma revolução, logo não podia dar a conhecer ao inimigo, fosse ele quem fosse, qualquer fraqueza.
Enquanto ele cuspia sangue tive a brilhante ideia de viajar de barco.
Dirigimo-nos para as docas, à procura de um navio. Como não encontrei as bilheteiras, perguntei a uns gajos que barcos podíamos apanhar para alcançar o Brasil ou a Turquia. Eles riram-se na minha cara. Nada fiz porque eram musculosos.
Dormitámos por ali por um par de noites. Entretanto eu tinha decidido viajar para a Turquia porque no Brasil se falava brasileiro e na Turquia turco; achei que o segundo idioma fosse mais fácil pois só precisava de duas sílabas para pronunciar a palavra 'turco', enquanto que para pronunciar 'brasileiro' precisava do dobro.
Uma semana mais tarde a Maria apareceu sorridente. Disse que partiríamos para a Turquia nessa manhã. Eu beijei-a. Inquiri como tinha ela conseguido. Ela piscou o olho e explicou que tinha acordado com um manda-chuva qualquer que seguiríamos para a Turquia, via-marítima, devido a um contrato simples que conseguira. A bordo, ela satisfaria os homens que gostavam de mulheres, Bruno os homens que gostavam de homens e que eu trabalharia gratuitamente na cozinha, lavando a louça e limpando o esterco dos outros. Eu acedi, mas obriguei o Bruno a trocar de posto comigo, porque macho que é macho não trabalha de borla, muito menos em cozinhas.
Então lá fomos nós, navegando pelas águas escuras e revoltas - bonita frase, ah?. Logo na primeira noite arrependi-me ao descobri que andar de barco era pior do que de avião. Aquilo abanava por todos os lados. Mas a Maria e o Bruno foram bons para mim. Quando estávamos os três, eles pegavam em mim, um de cada lado, e sempre que a embarcação ia para a direita eles inclinavam-me para a esquerda e vice-versa. Quando não estava com eles eu ocupava-me da tripulação e, aí, eu inclinava-me para todos os lados e perdia a noção se era o barco que estava torto se eu.
Chegámos à Turquia e a Maria levou-nos para a cidade onde os manifestantes lutavam pelos seus direitos. Contudo, a serenidade reinava. Dormimos naquela praça famosa durante uma série de noites. Primeiro pensei que o pessoal apenas se manifestava durante o fim de semana porque durante a semana tinham de se levantar cedo para trabalhar e deixar os filhos na escola. Depois percebi que também durante o período de descanso ninguém aparecia para queimar caixotes do lixo e atirar pedras à autoridade.
Fiquei desiludido pois parecia que o povo tinha deixado de acreditar.
Por isso, roubei um lenço numa loja e tapei a cara com ele - percebi pois a razão pela qual o destino resolvera tratar-me por Moustafa. Rasguei a t-shirt do corpo e gritei para dois polícias que a vida era uma merda. Eles olharam para mim e riram. Disseram qualquer coisa que não entendi e voltarem as costas.
Eu fiquei chateado e pensei que devia ter ido para o Brasil porque não percebia nada do que eles diziam.
Revoltado por viver num mundo que não compreendia, ateei fogo a um carro e comecei a lutar pelos meus direitos. Foi muito fixe, dado que numa questão de minutos vi-me envolvido por uma multidão que se juntara a mim.
Aquilo estava ao rubro. Lutámos durante semanas. Apanhei bastonadas e mandei garrafas de álcool a arder aos bófias e aos edifícios estatais. Senti-me bem por fazer parte da resistência - ao quê não me perguntem, mas isso era secundário.
Mas tudo o que é bom acaba. Fiquei lixado mas era mesmo assim. Andámos os três pelas ruas a ver o que o futuro nos reservava. A Maria acabou por casar com um vendedor de gelados com o dobro de sua idade e cego de uma vista. O Bruno decidira seguir um líder religioso que tinha o dom da palavra, não obstante o que ele dizia me fosse imperceptível, e provavelmente a Bruno também.
Vi-me sozinho lá. Depois descobri que a Graça tinha entrado para o governo, para ministra da educação. Decidi, portanto, regressar para ver se me arranjava um emprego, talvez para professor de Geografia, disciplina que eu sempre dominara.



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2 comentários:

Cristina Torrão disse...

"Eu acedi, mas obriguei o Bruno a trocar de posto comigo" :D
(não que seja a única frase divertida do texto, mas é, realmente, um momento alto)

Guiomar Ricardo disse...

Pois é verdade,o humor que caracterizam AS CRÓNICAS do Vasco são hilariantes e proporcionam-nos uns momentos impagáveis. Adorei!