CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
MOUSTAFA
(e Maria e Bruno) – PARTE IX
Pois
é, senhores e senhoras, ficaram a saber parte da minha vida. Foi bom
ter-vos aqui comigo, para desabafar depois de ter ido para a rua. Mas
agora tenho de partir, porque conquistarei outra rua, outra praça,
outra cidade.
Durante este fim de semana que
passou vi tumultos e mais tumultos na televisão. Tenho-me apercebido
de que têm havido muitos recentemente, um pouco por todo o mundo,
como os que ocorrera no Iémen, na América Central, ou na Tunísia,
em pleno Sudeste Asiático - será que me voltei a enganar?, raios
para a Geografia.
Porém, nestes últimos dias o
povo aglomerava-se no Brasil e na Turquia. Então, a revolta interior
que sempre esteve dentro de mim apelou: 'Não sejas S-A-C-I-R-D-E-M,
luta com o teu povo', embora, na verdade, o povo não fosse o meu.
Por isso fiz uma mochila, agarrei no dinheiro que conservava debaixo
da almofada cheia de saliva seca e fiz-me à estrada.
Ia parar a história por aqui,
mas como sei que não conseguiríeis aguentar, vou contá-la até ao
fim - ou quase até ao fim.
Assim que parti, fiquei com fome.
Parei na segunda esquina a contar do meu apartamento e sentei-me numa
cadeia de fast-food cujo nome não pronunciarei, por causa da
publicidade gratuita e dos direitos que uma empresa concorrente
poderá eventualmente vir a pagar-me, depois de ficar famoso com a
minha jornada. Mas pronto, posso adiantar-vos - só os inteligente
compreenderão - que o seu símbolo é um palhaço um quanto
assustador e que começa por 'Mc' - deve ter sido fundada por um DJ
qualquer.
De estômago refastelado, deu-me
a saudade. Liguei à Maria e ao Bruno para me acompanharem. E,
logicamente, eles deixaram tudo para trás para me seguirem.
Perguntaram-me onde ia e eu disse que para o Brasil ou para a
Turquia. A Maria explicou-me que eu tinha de decidir para onde
seguir, pelo simples facto de os países se localizarem em sítios
antagónicos - não sei o que esta palavra quer dizer, mas foi a que
ela usou. Perguntei-lhe se queria levar uma cabeçada por me
desrespeitar, o que ela recusou gentilmente com a cabeça. Pensei
durante uns minutos - poucos, claro - e supus que teria de marchar em
direcção ao país em que não fosse preciso apanhar qualquer avião,
devido à fobia do Bruno. Prontamente ele disse que a fobia era minha
e não dele, ao que argumentei com uma cotovelada na caixa torácica
e um soquito debaixo do queixo. Eu sabia que o medo era meu, mas eu
ia iniciar uma revolução, logo não podia dar a conhecer ao
inimigo, fosse ele quem fosse, qualquer fraqueza.
Enquanto ele cuspia sangue tive a
brilhante ideia de viajar de barco.
Dirigimo-nos para as docas, à
procura de um navio. Como não encontrei as bilheteiras, perguntei a
uns gajos que barcos podíamos apanhar para alcançar o Brasil ou a
Turquia. Eles riram-se na minha cara. Nada fiz porque eram
musculosos.
Dormitámos por ali por um par de
noites. Entretanto eu tinha decidido viajar para a Turquia porque no
Brasil se falava brasileiro e na Turquia turco; achei que o segundo
idioma fosse mais fácil pois só precisava de duas sílabas para
pronunciar a palavra 'turco', enquanto que para pronunciar
'brasileiro' precisava do dobro.
Uma semana mais tarde a Maria
apareceu sorridente. Disse que partiríamos para a Turquia nessa
manhã. Eu beijei-a. Inquiri como tinha ela conseguido. Ela piscou o
olho e explicou que tinha acordado com um manda-chuva qualquer que
seguiríamos para a Turquia, via-marítima, devido a um contrato
simples que conseguira. A bordo, ela satisfaria os homens que
gostavam de mulheres, Bruno os homens que gostavam de homens e que eu
trabalharia gratuitamente na cozinha, lavando a louça e limpando o
esterco dos outros. Eu acedi, mas obriguei o Bruno a trocar de posto
comigo, porque macho que é macho não trabalha de borla, muito menos
em cozinhas.
Então
lá fomos nós, navegando pelas águas escuras e revoltas - bonita
frase, ah?. Logo na primeira noite arrependi-me ao descobri que andar
de barco era pior do que de avião. Aquilo abanava por todos os
lados. Mas a Maria e o Bruno foram bons para mim. Quando estávamos
os três, eles pegavam em mim, um de cada lado, e sempre que a
embarcação ia para a direita eles inclinavam-me para a esquerda e
vice-versa. Quando não estava com eles eu ocupava-me da tripulação
e, aí, eu inclinava-me para todos os lados e perdia a noção se era
o barco que estava torto se eu.
Chegámos à Turquia e a Maria
levou-nos para a cidade onde os manifestantes lutavam pelos seus
direitos. Contudo, a serenidade reinava. Dormimos naquela praça
famosa durante uma série de noites. Primeiro pensei que o pessoal
apenas se manifestava durante o fim de semana porque durante a semana
tinham de se levantar cedo para trabalhar e deixar os filhos na
escola. Depois percebi que também durante o período de descanso
ninguém aparecia para queimar caixotes do lixo e atirar pedras à
autoridade.
Fiquei desiludido pois parecia
que o povo tinha deixado de acreditar.
Por isso, roubei um lenço numa
loja e tapei a cara com ele - percebi pois a razão pela qual o
destino resolvera tratar-me por Moustafa. Rasguei a t-shirt do corpo
e gritei para dois polícias que a vida era uma merda. Eles olharam
para mim e riram. Disseram qualquer coisa que não entendi e voltarem
as costas.
Eu fiquei chateado e pensei que
devia ter ido para o Brasil porque não percebia nada do que eles
diziam.
Revoltado por viver num mundo que
não compreendia, ateei fogo a um carro e comecei a lutar pelos meus
direitos. Foi muito fixe, dado que numa questão de minutos vi-me
envolvido por uma multidão que se juntara a mim.
Aquilo estava ao rubro. Lutámos
durante semanas. Apanhei bastonadas e mandei garrafas de álcool a
arder aos bófias e aos edifícios estatais. Senti-me bem por fazer
parte da resistência - ao quê não me perguntem, mas isso era
secundário.
Mas tudo o que é bom acaba.
Fiquei lixado mas era mesmo assim. Andámos os três pelas ruas a ver
o que o futuro nos reservava. A Maria acabou por casar com um
vendedor de gelados com o dobro de sua idade e cego de uma vista. O
Bruno decidira seguir um líder religioso que tinha o dom da palavra,
não obstante o que ele dizia me fosse imperceptível, e
provavelmente a Bruno também.
Vi-me sozinho lá. Depois
descobri que a Graça tinha entrado para o governo, para ministra da
educação. Decidi, portanto, regressar para ver se me arranjava um
emprego, talvez para professor de Geografia, disciplina que eu sempre
dominara.
http://www.facebook.com/pages/Vasco-Ricardo/439622106051031?ref=hl
2 comentários:
"Eu acedi, mas obriguei o Bruno a trocar de posto comigo" :D
(não que seja a única frase divertida do texto, mas é, realmente, um momento alto)
Pois é verdade,o humor que caracterizam AS CRÓNICAS do Vasco são hilariantes e proporcionam-nos uns momentos impagáveis. Adorei!
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